Sou
qualquer
coisa que fui.
Pessoa - Livro do Desassossego
Serei sempre no místico ou no não-místico, local e submisso, servo das minhas sensações e da hora em que as ter.
Serei sempre, sob o grande pálio azul do céu mudo, pajem num rito incompreendido, vestido de vida para cumpri-lo, e executando, sem saber porquê, gestos e passos, posições e maneiras, até que a festa acabe, ou o meu papel nela, e eu possa ir comer coisas de gala nas grandes barracas que estão, dizem, lá em baixo ao fundo do jardim.
[167]
Estou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é, porém, senão a monotonia de mim. Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade — a identidade sentida, embora falsa, consigo mesma — pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.
O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. Desejo partir — não para as Índias impossíveis, ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo, mas para o lugar qualquer — aldeia ou ermo — que tenha em si o não ser este lugar. Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar como vida, e não como repouso. Uma cabana à beira-mar, uma caverna, até, no socalco rugoso de uma serra, me pode dar isto. Infelizmente, só a minha vontade mo não pode dar.
A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem de cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor covarde que todos temos à liberdade — que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a — é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é a de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por conhecimento, que, pois que a monotonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo? Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam? Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os campos livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz que não estranharia a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lanços de escada até à rua, ou não entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os bons-dias com o barbeiro ocioso?
Tudo que nos cerca se torna parte de nós, se nos infiltra na sensação da carne e da vida, e, baba da grande Aranha, nos liga sutilmente ao que está perto, enleando-nos num leito leve de morte lenta, onde balouçamos ao vento.
Tudo é nós, e nós somos tudo; mas de que serve isto, se tudo é nada?
Um raio de sol, uma nuvem que a sombra súbita diz que passa, uma brisa que se ergue, o silêncio que se segue quando ela cessa, um rosto ou outro, algumas vozes, o riso casual entre elas que falam, e depois a noite onde emergem sem sentido os hieróglifos quebrados das estrelas.
[168]
E eu, que odeio a vida com timidez, temo a morte com fascinação. Tenho medo desse nada que pode ser outra coisa, e tenho medo dele simultaneamente como nada e outra coisa qualquer, como se nele se pudessem reunir o nulo e o horrível, como se no caixão me fechassem a respiração eterna de uma alma, corpórea, como se ali triturassem de clausura o imortal. A ideia de inferno, que só uma alma satânica poderia ter inventado, parece-me derivar-se de uma confusão desta maneira — ser a mistura de dois medos diferentes, que se contradizem e malignam.
[169]
Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho, tudo quanto tenho escrito. E acho que tudo é nulo e mais valera que eu o não houvesse feito. As coisas conseguidas, sejam impérios ou frases, têm, porque se conseguiram, aquela pior parte das coisas reais, que é o sabermos que são perecíveis. Não é isto, porém, que sinto e me dói no que fiz, nestes lentos momentos em que o releio. O que me dói é que não valeu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi no que fiz o não ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a pena fazê-lo.
Tudo quanto buscamos, buscamo-lo por uma ambição, mas essa ambição ou não se atinge, e somos pobres, ou julgamos que a atingimos, e somos loucos ricos.
O que me dói é que o melhor é mau, e que outro, se o houvesse, e que eu sonho, o haveria feito melhor. Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensamos em fazer. Desdiz não só da perfeição externa, senão da perfeição interna; falha não só à regra do que deveria ser, senão à regra do que julgávamos que poderia ser. Somos ocos não só por dentro, senão também por fora, párias da antecipação e da promessa.
Com que vigor da alma sozinha fiz página sobre página reclusa, vivendo sílaba a sílaba a magia falsa, não do que escrevia, mas do que supunha que escrevia! Com que encantamento de bruxedo irônico me julguei poeta da minha prosa, no momento alado em que ela me nascia, mais rápida que os movimentos da pena, como um desforço falaz aos insultos da vida! E afinal, hoje, relendo, vejo rebentar meus bonecos, sair-lhes a palha pelos rasgos, despejarem-se sem ter sido…
[170]
Depois que as últimas chuvas passaram para o sul, e só ficou o vento que as varreu, regressou aos montões da cidade a alegria do sol certo e apareceu muita roupa branca pendurada a saltar nas cordas esticadas por paus médios nas janelas altas dos prédios de todas as cores.
Também fiquei contente, porque existo. Saí de casa para um grande fim, que era, afinal, chegar a horas ao escritório. Mas, neste dia, a própria compulsão da vida participava daquela outra boa compulsão que faz o sol vir nas horas do almanaque, conforme a latitude e a longitude dos lugares da terra. Senti-me feliz por não poder sentir-me infeliz. Desci a rua descansadamente, cheio de certeza, porque, enfim, o escritório conhecido, a gente conhecida nele, eram certezas. Não admira que me sentisse livre, sem saber de quê. Nos cestos pousados à beira dos passeios da Rua da Prata as bananas de vender, sob o sol, eram de um amarelo grande.
Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o haver um sol bom neste Sul feliz, bananas mais amarelas por terem nódoas negras, a gente que as vende porque fala, os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo, azul esverdeado a ouro, todo este recanto doméstico do sistema do Universo.
Virá o dia em que não veja isto mais, em que me sobreviverão as bananas da orla do passeio, e as vozes das vendedeiras solertes, e os jornais do dia que o pequeno estendeu lado a lado na esquina do outro passeio da rua. Bem sei que as bananas serão outras, e que as vendedeiras serão outras, e que os jornais terão, a quem se baixar para vê-los, uma data que não é a de hoje. Mas eles, porque não vivem, duram ainda que outros; eu, porque vivo, passo ainda que o mesmo.
Esta hora poderia eu bem solenizá-la comprando bananas, pois me parece que nestas se projetou todo o sol do dia como um holofote sem máquina. Mas tenho vergonha dos rituais, dos símbolos, de comprar coisas na rua. Podiam não me embrulhar bem as bananas, não mas vender como devem ser vendidas por eu as não saber comprar como devem ser compradas. Podiam estranhar a minha voz ao perguntar o preço. Mais vale escrever do que ousar viver, ainda que viver não seja mais que comprar bananas ao sol, enquanto o sol dura e há bananas que vender.
Mais tarde, talvez… Sim, mais tarde… Um outro, talvez… Não sei…
[171]
Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.
A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro, e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Há quarenta anos que aquela figura de homem vive quase todo o dia numa cozinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vai de vez em quando à terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cozinha (definitivamente) para os campos que comprou na Galiza; está em Lisboa há quarenta anos e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um teatro, e há um só dia de Coliseu — palhaços nos vestígios interiores da sua vida. Casou não sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direção a onde eu estou, exprime uma grande, uma solene, uma contente felicidade. E ele não disfarça, nem [há] razão para que disfarce. Se a sente é porque verdadeiramente a tem.
E o criado velho que me serve, e que acaba de depor ante mim o que deve ser o milionésimo café da sua deposição de café em mesas? Tem a mesma vida que a do cozinheiro, apenas com a diferença de quatro ou cinco metros — os que distam da localização de um na cozinha para a localização do outro na parte de fora da casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vai mais vezes à Galiza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhece o Porto, onde esteve quatro anos, e é igualmente feliz.
Revejo, com um pasmo assustado, o panorama destas vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta delas, que quem não tem nem horror, nem pena, nem revolta, são os próprios que teriam direito a tê-las, são os mesmos que vivem essas vidas. É o erro central da imaginação literária: supor que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao gênio, apenas, o ser mais alguns outros.
Tudo, afinal, é dado em relação àquilo em que é dado. Um pequeno incidente de rua, que chama à porta o cozinheiro desta casa, entretém-no mais que me entretém a mim a contemplação da ideia mais original, a leitura do melhor livro, o mais grato dos sonhos inúteis. E, se a vida é essencialmente monotonia, o fato é que ele escapou à monotonia mais do que eu. E escapa à monotonia mais facilmente do que eu. A verdade não está com ele nem comigo, porque não está com ninguém; mas a felicidade está com ele deveras.
Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão. Para o meu cozinheiro monótono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstrato de novidade ficou no mar com a segunda delas.
Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espetáculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.
Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distração. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu. Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escritório da Rua dos Douradores, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de impossível?
A monotonia, a igualdade baça dos dias mesmos, a nenhuma diferença de hoje para ontem — isto me fique sempre, com a alma desperta para gozar da mosca que me distrai, passando casual ante meus olhos, da gargalhada que se ergue volúvel da rua incerta, a vasta libertação de serem horas de fechar o escritório, o repouso infinito de um dia feriado.
Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.
[172]
A ladeira leva ao moinho, mas o esforço não leva a nada.
Era uma tarde de primeiro outono, quando o céu tem um calor frio morto, e há nuvens que abafam a luz em cobertores de lentidão.
Duas coisas só me deu o Destino: uns livros de contabilidade e o dom de sonhar.
[173]
O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate — mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma.
Como um espetáculo na bruma.
Aprendi nos sonhos a coroar de imagens as frontes do quotidiano, a dizer o comum com estranheza, o simples com derivação, a dourar, com um sol de artifício, os recantos e os móveis mortos e [a] dar música, como para me embalar, quando as escrevo, às frases fluidas da minha fixação.
[174]
Depois de uma noite mal dormida, toda a gente não gosta de nós. O sono ido levou consigo qualquer coisa que nos tornava humanos. Há uma irritação latente conosco, parece, no mesmo ar inorgânico que nos cerca. Somos nós, afinal, que nos desapoiamos, e é entre nós e nós que se fere a diplomacia da batalha surda.
Tenho hoje arrastado pela rua os pés e o grande cansaço. Tenho a alma reduzida a uma meada atada, e o que sou e fui, que sou eu, esqueceu-se de seu nome. Se tenho amanhã, não sei senão que não dormi, e a confusão de vários intervalos põe grandes silêncios na minha fala interna.
Ah, grandes parques dos outros, jardins usuais para tantos, maravilhosas áleas dos que nunca me conhecerão! Estagno entre vigílias, como quem nunca ousou ser supérfluo, e o que medito estremunha-se com[o] um sonho ao fim.
Sou uma casa viúva, claustral de si mesma, sombreada de espectros tímidos e furtivos. Estou sempre no quarto ao lado, ou estão eles, e há grandes ruídos de árvores em meu torno. Divago e encontro; encontro porque divago. Meus dias de criança vestidos vós mesmos de bibe!
E, em meio de tudo isto, vou pela rua fora, dorminhoco da minha vagabundagem folha. Qualquer vento lento me varreu do solo, e erro, como um fim de crepúsculo, entre os acontecimentos da paisagem. Pesam-me as pálpebras nos pés arrastados. Quisera dormir porque ando. Tenho a boca fechada como se fosse para os beiços se pegarem. Naufrago o meu deambular.
Sim, não dormi, mas estou mais certo assim, quando nunca dormi nem durmo. Sou eu verdadeiramente nesta eternidade casual e simbólica do estado de meia-alma em que me iludo. Uma ou outra pessoa olha-me como se me conhecesse e me estranhasse. Sinto que os olhos também com órbitas sentidas sob pálpebras que as roçam, e não quero saber de haver mundo.
Tenho sono, muito sono, todo o sono!
[175]
Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da “ciência” primitiva dos evangelhos; ao mesmo tempo, a liberdade de discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com eles os problemas religiosos onde fossem da metafísica. Ébrias de uma coisa incerta, a que chamaram “positividade”, essas gerações criticaram toda a moral, esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doutrinas, só ficou a certeza de nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia, evidentemente, ser senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que acordamos para um mundo ávido de novidades sociais, e com alegria ia à conquista de uma liberdade que não sabia o que era, de um progresso que nunca definira.
Mas o criticismo frusto dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que a tivéssemos; se nos legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos legou a indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentemente, porque viviam numa época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem destruir sem sentir o edifício rachar-se. Nós herdamos a destruição e os seus resultados.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicômio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação.
[176]
A Estalagem da razão
A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível.
[177]
Teorias metafísicas que possam dar-nos um momento a ilusão de que explicamos o inexplicável; teorias morais que possam iludir-nos uma hora com o convencimento de que sabemos por fim qual, de todas as portas fechadas, é o ádito da virtude; teorias políticas que nos persuadam durante um dia que resolvemos qualquer problema, sendo que não há problema solúvel, exceto os da matemática — resumamos a nossa atitude para com a vida nesta ação conscientemente estéril, nesta preocupação que, se não dá prazer, evita, ao menos, sentirmos a presença da dor.
Nada há que tão notavelmente determine o auge de uma civilização, como o conhecimento, nos que a vivem, da esterilidade de todo o esforço, porque nos regem leis implacáveis, que nada revoga nem obstrui. Somos, porventura, servos algemados ao capricho de deuses, mais fortes porém não melhores que nós, subordinados, nós como eles, à regência férrea de um Destino abstrato, superior à justiça e à bondade, alheio ao bem e ao mal.
[178]
Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos.
Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro.
Tudo aquilo que em nossas atividades consideramos superior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é o ideal senão a confissão de que a vida não serve? Que é a arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo morto, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é antes uma imersão em nós mesmos, uma destruição das relações entre nós e a vida, uma sombra agitada da morte.
O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.
Povoamos sonhos, somos sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes, ideias, ideais e filosofias.
Nunca encontrar Deus, nunca saber, sequer, se Deus existe! Passar de mundo para mundo, de encarnação para encarnação, sempre na ilusão que acarinha, sempre no erro que afaga.
A verdade nunca, a paragem nunca! A união com Deus nunca! Nunca inteiramente em paz, mas sempre um pouco dela, sempre o desejo dela!
[179]
O instinto infante da humanidade que faz que o mais orgulhoso de nós, se é homem e não louco, anseie, [. . . ], pela mão paternal que o guie, como quer que seja logo que o guie, através do mistério e da confusão do mundo. Cada um de nós é um grão de pó que o vento da vida levanta, e depois deixa cair. Temos que arrimar-nos a um esteio, que pôr a mão pequena em uma outra mão; porque a hora é sempre incerta, o céu sempre longe, e a vida sempre alheia.
O mais alto de nós não é mais que um conhecedor mais próximo do oco e do incerto de tudo.
Pode ser que nos guie uma ilusão; a consciência, porém, é que nos não guia.
[180]
Se algum dia me suceder que, com uma vida firmemente segura, possa livremente escrever e publicar, sei que terei saudades desta vida incerta em que mal escrevo e não publico. Terei saudades, não só porque essa vida frusta é passado e vida que não mais terei, mas porque há em cada espécie de vida uma qualidade própria e um prazer peculiar, e quando se passa para outra vida, ainda que melhor, esse prazer peculiar é menos feliz, essa qualidade própria é menos boa, deixam de existir, e há uma falta.
Se algum dia me suceder que consiga levar ao bom calvário a cruz da minha intenção, encontrarei um calvário nesse bom calvário, e terei saudades de quando era fútil, frusto e imperfeito. Serei menos de qualquer maneira.
Tenho sono. O dia foi pesado de trabalho absurdo no escritório quase deserto. Dois empregados estão doentes e os outros não estão aqui. Estou só, salvo o moço longínquo. Tenho saudades da hipótese de poder ter um dia saudades, e ainda assim absurdas.
Quase peço aos deuses que haja que me guardem aqui, como num cofre, defendendo-me das agruras e também das felicidades da vida.
[181]
Nas vagas sombras de luz por findar antes que a tarde seja noite cedo, gozo de errar sem pensar entre o que a cidade se torna, e ando como se nada tivesse remédio. Agrada-me, mais à imaginação que aos sentidos, a tristeza dispersa que está comigo. Vago, e folheio em mim, sem o ler, um livro de texto intersperso [sic] de imagens rápidas, de que vou formando indolentemente uma ideia que nunca se completa.
Há quem leia com a rapidez com que olha, e conclua sem ter visto tudo.
Assim tiro do livro que se me folheia na alma uma história vaga por contar, memórias de um outro vagabundo, bocados de descrições de crepúsculos ou luares, com áleas de parques no meio, e figuras de seda várias, a passar, a passar.
Indiscrimino a tédio e outro. Sigo, simultaneamente, pela rua, pela tarde e pela leitura sonhada, e os caminhos são verdadeiramente percorridos. Emigro e repouso, como se estivesse a bordo com o navio já no mar alto.
Súbitos, os candeeiros mortos coincidem luzes pelos prolongamentos duplos da rua longa e curva. Como um baque a minha tristeza aumenta. E que o livro acabou. Há só, na viscosidade aérea da rua abstrata, um fio externo de sentimento, como a baba do Destino idiota, a pingar-me sobre a consciência da alma.
Outra vida, a da cidade que anoitece. Outra alma, a de quem olha a noite. Sigo incerto e alegórico, irrealmente sentiente. Sou como uma história que alguém houvesse contado, e, de tão bem contada, andasse carnal mas não muito neste mundo romance, no princípio de um capítulo: “A essa hora um homem podia ser visto seguir lentamente pela rua de…”
Que tenho eu com a vida?
[182]
Intervalo
Antefalhei a vida, porque nem sonhando-a ela me apareceu deleitosa.
Chegou até mim o cansaço dos sonhos… Tive ao senti-lo uma sensação externa e falsa, como a de ter chegado ao término de uma estrada infinita. Transbordei de mim não sei para onde, e aí fiquei estagnado e inútil.
Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me.
Sinto-me expulso da minha alma.
Assisto a mim. Presenceio-me. As minhas sensações passam diante de não sei que olhar meu como coisas externas. Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento.
Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única ação possível é vê-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de envelhecimentos!
A mínima ação é-me dolorosa como uma heroicidade. O mais pequeno gesto pesa-me no ideá-lo, como se fora uma coisa que eu realmente pensasse em fazer.
Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso em poder estar.
O ideal era não ter mais ação do que a ação falsa de um repuxo — subir para cair no mesmo sítio, brilho ao sol sem utilidade nenhuma a fazer som no silêncio da noite para que quem sonhe pense em rios no seu sonho e sorria esquecidamente.
[183]
Desde o princípio baço do dia quente e falso nuvens escuras e de contornos mal rotos rondavam a cidade oprimida. Dos lados a que chamamos da barra, sucessivas e torvas, essas nuvens sobrepunham-se, e uma antecipação de tragédia estendia-se com elas do indefinido rancor das ruas contra o sol alterado.
Era meio-dia e já, na saída para o almoço, pesava uma esperança má na atmosfera empalidecida. Farrapos de nuvens esfarrapadas negrejavam na dianteira dela. O céu, para os lados do Castelo, era limpo mas de um mau azul. Havia sol mas não apetecia gozá-lo.
À uma hora e meia da tarde, quando se regressara ao escritório, parecia mais limpo o céu, mas só para um lado antigo. Sobre os lados da barra estava de fato mais descoberto. De sobre a parte norte da cidade, porém, as nuvens conjugavam-se lentamente numa nuvem só — negra, implacável, avançando lentamente com garras rombas de branco cinzento na ponta de braços negros. Dentro em pouco atingiria o sol, e os ruídos da cidade parece que se abafavam com o esperá-la.
Era, ou parecia, um pouco mais límpido o céu para os lados de leste, mas o calor fazia mais desagrado. Suava-se na sombra da sala grande do escritório. “Vem aí uma grande trovoada”, disse o Moreira, e voltou a página do Razão.
Às três horas da tarde falhara já toda a ação do sol. Foi preciso — e era triste porque era verão — acender a luz elétrica — primeiro ao fundo da sala grande, onde estavam empacotando as remessas, depois já a meio da sala, onde se tornava difícil fazer sem erro as guias de remessa e notar nelas os números das senhas de caminho-de-ferro. Por fim, já eram quase quatro horas, até nós — os privilegiados das janelas — não víamos agradavelmente para trabalhar. O escritório ficou iluminado. O patrão Vasques atirou com o guarda-vento do gabinete e disse para fora, saindo: “Ó Moreira, eu tinha que ir a Benfica mas não vou; vai-se fartar de chover. ” “E é lá desse lado”, respondeu o Moreira, que morava ao pé da Avenida. Os ruídos da rua destacaram-se de repente, alteraram-se um pouco, e era, não sei porquê, um pouco triste o som das campainhas dos elétricos na rua paralela e próxima.
[184]
Antes que o estio cesse e chegue o outono, no cálido intervalo em que o ar pesa e as cores abrandam, as tardes costumam usar um traje sensível de gloríola falsa. São comparáveis àqueles artifícios da imaginação em que as saudades são de nada, e se prolongam indefinidas como rastos de navios formando a mesma cobra sucessiva.
Nessas tardes enche-me, como um mar em maré, um sentimento pior que o tédio mas a que não compete outro nome senão tédio — um sentimento de desolação sem lugar, de naufrágio de toda a alma. Sinto que perdi um Deus complacente, que a Substância de tudo morreu. E o universo sensível é para mim um cadáver que amei quando era vida; mas é tudo tornado nada na luz ainda quente das últimas nuvens coloridas.
O meu tédio assume aspectos de horror; o meu aborrecimento é um medo. O meu suor não é frio, mas é fria a minha consciência do meu suor. Não há mal-estar físico, salvo que o mal-estar da alma é tão grande que passa pelos poros do corpo e o inunda a ele também.
É tão magno o tédio, tão soberano o horror de estar vivo, que não concebo que coisa haja que pudesse servir de lenitivo, de antídoto, de bálsamo ou esquecimento para ele. Dormir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como tudo. Ir e parar são a mesma coisa impossível. Esperar e descrer equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira de frascos vazios.
Contudo que saudade do futuro, se deixo os olhos vulgares receber a saudação morta do dia iluminado que finda! Que grande enterro da esperança vai pela calada dourada ainda dos céus inertes, que cortejo de vácuos e nadas se espalha a azul rubro que vai ser pálido pelas vastas planícies do espaço alvar!
Não sei o que quero ou o que não quero. Deixei de saber querer, de saber como se quer, de saber as emoções ou os pensamentos com que ordinariamente se conhece que estamos querendo, ou querendo querer. Não sei quem sou ou o que sou. Como alguém soterrado sob um muro que se desmoronasse, jazo sob a vacuidade tombada do universo inteiro. E assim vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco do afago de ser diferente ondule, como uma brisa, pelo começo da minha impaciência de mim.
Ah, e a lua alta e maior destas noites plácidas, mornas de angústia e desassossego! A paz sinistra da beleza celeste, ironia fria do ar quente, azul negro enevoado de luar e tímido de estrelas.
[185]
Intervalo
Esta hora horrorosa que ou decresça para possível ou cresça para mortal.
Que a manhã nunca raie, e que eu e esta alcova toda, e a sua atmosfera interior a que pertenço, tudo se espiritualize em Noite, se absolute em Treva e nem fique de mim uma sombra que manche da minha memória o que quer que seja que não morra.
[186]
Prouvera aos deuses, meu coração triste, que o Destino tivesse um sentido! Prouvera antes ao Destino que os deuses o tivessem!
Sinto às vezes, acordando na noite, mãos invisíveis que tecem o meu fado.
Jazo a vida. Nada de mim interrompe nada.
[187]
A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta — duas misérias em um corpo só.
Sim, vejo nitidamente, com a clareza com [que] os relâmpagos da razão destacam do negrume da vida os objetos próximos que no-la formam, o que há de vil, de lasso, de deixado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a vida inteira — este escritório sórdido até à sua medula de gente, este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto, esta mercearia da esquina cujo dono conheço como gente conhece gente, estes moços da porta da taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas…
Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou repudiá-lo, e eu nem o domino, porque o não excedo adentro do real, nem o repudio, porque, sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.
E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a covardia de ter como vida aquele lixo da alma que os outros têm só no sono, na figura da morte com que ressonam, na calma com que parecem vegetais progredidos!
Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas adentro, nem um desejo inútil que não seja deveras inútil!
Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras:
“Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma! ” Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?
É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.
E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida, absurda como um relógio público parado.
Aquela sensibilidade tênue, mas firme, o sonho longo mas consciente que forma no seu conjunto o meu privilégio de penumbra.
[188]
O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de a não pensar. Viver a vida decorrentemente, exteriormente, como um gato ou um cão — assim fazem os homens gerais, e assim se deve viver a vida para que possa contar a satisfação do gato e do cão.
Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o mesmo pensamento, porque pensar é decompor. Se os homens soubessem meditar no mistério da vida, se soubessem sentir as mil complexidades que espiam a alma em cada pormenor da ação, não agiriam nunca, não viveriam até. Matar-se-iam de assustados, como os que se suicidam para não ser guilhotinados no dia seguinte.
[189]
Dia de chuva
O ar é de um amarelo escondido, como um amarelo pálido visto através dum branco sujo. Mal há amarelo no ar acinzentado. A palidez do cinzento, porém, tem um amarelo na sua tristeza.
[190]
Qualquer deslocamento das horas usuais traz sempre ao espírito uma novidade fria, um prazer levemente desconfortante. Quem tem o hábito de sair do escritório às seis horas, e por acaso saia às cinco, tem desde logo um feriado mental e uma coisa que parece pena de não saber o que fazer de si.
Ontem, por ter de que tratar longe, saí do escritório às quatro horas, e às cinco tinha terminado a minha tarefa afastada. Não costumo estar nas ruas àquela hora, e por isso estava numa cidade diferente. O tom lento da luz nas frontarias usuais era de uma doçura improfícua, e os transeuntes de sempre passavam por mim na cidade ao lado, marinheiros desembarcados da esquadra de ontem à noite.
Eram ainda horas de estar aberto o escritório. Recolhi a ele com um pasmo natural dos empregados de quem me havia já despedido. Então de volta? Sim, de volta. Estava ali livre de sentir, sozinho com os que me acompanhavam sem que espiritualmente ali estivessem para mim… Era em certo modo o lar, isto é, o lugar onde se não sente.
[191]
Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me “compreenda”, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo.
Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma alegria do ar é fresca demais contra a pele. O dia vai acabando não em cinzento, mas em azul-pálido. Um azul vago reflete-se, mesmo, nas pedras das ruas. Dói viver, mas é de longe. Sentir não importa. Acende-se uma ou outra montra.
Em uma outra janela alta há gente que vê acabarem o trabalho. O mendigo que roça por mim pasmaria, se me conhecesse.
No azul menos pálido e menos azul, que se espelha nos prédios, entardece um pouco mais a hora indefinida.
Cai leve, fim do dia certo, em que os que creem e erram se engrenam no trabalho do costume, e têm, na sua própria dor, a felicidade da inconsciência. Cai leve, onda de luz que cessa, melancolia da tarde inútil, bruma sem névoa que entra no meu coração. Cai leve, suave, indefinida palidez Lúcida e azul da tarde aquática — leve, suave, triste sobre a terra simples e fria. Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor.
[192]
Três dias seguidos de calor sem calma, tempestade latente no mal-estar da quietude de tudo, vieram trazer, porque a tempestade se escoasse para outro ponto, um leve fresco morno e grato à superfície lúcida das coisas. Assim às vezes, neste decurso da vida, a alma, que sofreu porque a vida lhe pesou, sente subitamente um alívio, sem que se desse nela o que o explicasse.
Concebo que sejamos climas, sobre que pairam ameaças de tormenta, noutro ponto realizadas.
A imensidade vazia das coisas, o grande esquecimento que há no céu e na terra…
[193]
Tenho assistido, incógnito, ao desfalecimento gradual da minha vida, ao soçobro lento de tudo quanto quis ser. Posso dizer, com aquela verdade que não precisa de flores para se saber que está morta, que não há coisa que eu tenha querido, ou em que tenha posto, um momento que fosse, o sonho só desse momento, que se me não tenha desfeito debaixo das janelas como pó parecendo pedra caído de um vaso de andar alto. Parece, até, que o Destino tem sempre procurado, primeiro, fazer-me amar ou querer aquilo que ele mesmo tinha disposto para que no dia seguinte eu visse que não tinha ou teria.
Espectador irônico de mim mesmo, nunca, porém, desanimei de assistir à vida. E, desde que sei, hoje, por antecipação de cada vaga esperança que ela há-de ser desiludida, sofro o gozo especial de gozar já a desilusão com a esperança, como um amargo com doce que torna o doce doce contra o amargo. Sou um estratégico sombrio, que, tendo perdido todas as batalhas, traça já, no papel dos seus planos, gozando-lhe o esquema, os pormenores da sua retirada fatal, na véspera de cada sua nova batalha.
Tem-me perseguido, como um ente maligno, o destino de não poder desejar sem saber que terei que não ter. Se um momento vejo na rua um vulto núbil de rapariga, e, indiferentemente que seja, tenho um momento de supor o que seria se ele fosse meu, é sempre certo que, a dez passos do meu sonho, aquela rapariga encontra o homem que vejo que é o marido ou o amante. Um romântico faria disto uma tragédia; um estranho sentiria isto como uma comédia: eu, porém, misturo as duas coisas, pois sou romântico em mim e estranho a mim, e viro a página para outra ironia.
Uns dizem que sem esperança a vida é impossível, outros que com esperança é vazia. Para mim, que hoje não espero nem desespero, ela é um simples quadro externo, que me inclui a mim, e a que assisto como um espetáculo sem enredo, feito só para divertir os olhos — bailado sem nexo, mexer de folhas ao vento, nuvens em que a luz do sol muda de cores, arruamentos antigos, ao acaso, em pontos desconformes da cidade.
Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal, ou, no modo como faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os loucos, de flores secas que continuam vivas nos meus sonhos. E, acima de tudo, estou tranquilo, como um boneco de serradura que, tomando consciência de si mesmo, abanasse de vez em quando a cabeça para que o guizo no alto do boné em bico (parte integrante da mesma cabeça) fizesse soar qualquer coisa, vida tinida do morto, aviso mínimo ao Destino.
Quantas vezes, contudo, em pleno meio desta insatisfação sossegada, me não sobe pouco a pouco à emoção consciente o sentimento do vácuo e do tédio de pensar assim! Quantas vezes não me sinto, como quem ouve falar através de sons que cessam e recomeçam, a amargura essencial desta vida estranha à vida humana — vida em que nada se passa salvo na consciência dela! Quantas vezes, despertando de mim, não entrevejo, do exílio que sou, quanto fora melhor ser o ninguém de todos, o feliz que tem ao menos a amargura real, o contente que tem cansaço em vez de tédio, que sofre em vez de supor que sofre, que se mata, sim, em vez de se morrer!
Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo.
Sou uma espécie de carta de jogar, de naipe antigo e incógnito, restando única do baralho perdido. Não tenho sentido, não sei do meu valor, não tenho a que me compare para que me encontre, não tenho a que sirva para que me conheça. E assim, em imagens sucessivas em que me descrevo — não sem verdade, mas com mentiras —, vou ficando mais nas imagens do que em mim, dizendo-me até não ser, escrevendo com a alma como tinta, útil para mais nada do que para se escrever com ela. Mas cessa a reação, e de novo me resigno. Volto em mim ao que sou, ainda que seja nada. E alguma coisa de lágrimas sem choro arde nos meus olhos hirtos, alguma coisa de angústia que não houve me empola asperamente a garganta seca. Mas aí, nem sei o que chorara, se houvesse chorado, nem por que foi que o não chorei. A ficção acompanha-me, como a minha sombra. E o que quero é dormir.
[194]
Há um grande cansaço na alma do meu coração. Entristece-me quem eu nunca fui, e não sei que espécie de saudades é a lembrança que tenho dele. Caí contra as esperanças e as certezas, com os poentes todos.
[195]
Há criaturas que sofrem realmente por não poder ter vivido na vida real com o Sr. Pickwick e ter apertado a mão ao Sr. Wardle. Sou um desses. Tenho chorado lágrimas verdadeiras sobre esse romance, por não ter vivido naquele tempo, com aquela gente, gente real.
Os desastres dos romances são sempre belos porque não corre sangue autêntico neles, nem apodrecem os mortos nos romances, nem a podridão é podre nos romances.
Quando o Sr. Pickwick é ridículo, não é ridículo, porque o é num romance. Quem sabe se o romance não será uma mais perfeita realidade e vida que Deus cria através de nós, que nós — quem sabe — existimos apenas para criar? As civilizações parece não existirem senão para produzir arte e literatura; é, palavras, o que delas fala e fica. Por que não serão essas figuras extra-humanas verdadeiramente reais? Dói-me mal na existência mental pensar que isto possa ser assim…
[196]
Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos — a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo.
Todos estes meios tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas.
Não sei se estes sentimentos são uma loucura lenta do desconsolo, se são reminiscências de qualquer outro mundo em que houvéssemos estado — reminiscências cruzadas e misturadas, como coisas vistas em sonhos, absurdas na figura que vemos mas não na origem se a soubéssemos. Não sei se houve outros seres que fomos, cuja maior completidão sentimos hoje, na sombra que deles somos, de uma maneira incompleta — perdida a solidez e nós figurando-no-la mal nas só duas dimensões da sombra que vivemos.
Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na alma. A impossibilidade de nos figurar uma coisa a que correspondam, a impossibilidade de encontrar qualquer coisa que substitua aquela a que se abraçam em visão — tudo isto pesa como uma condenação dada não se sabe onde, ou por quem, ou porquê.
Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um desgosto da vida e de todos os seus gestos, um cansaço antecipado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anônimo de todos os sentimentos. Nestas horas de mágoa sutil, torna-se-nos impossível, até em sonho, ser amante, ser herói, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na ideia do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. É tudo um caos de coisas nenhumas.
Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias — está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma — como única realidade deste momento — há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro.
[197]
Sinto o tempo com uma dor enorme. É sempre com uma comoção exagerada que abandono qualquer coisa. O pobre quarto alugado onde passei uns meses, a mesa do hotel de província onde passei seis dias, a própria triste sala de espera da estação de caminho de ferro onde gastei duas horas à espera do comboio — sim, mas as coisas boas da vida, quando as abandono e penso, com toda a sensibilidade dos meus nervos, que nunca mais as verei e as terei, pelo menos naquele preciso e exato momento, doem-me metafisicamente. Abre-se-me um abismo na alma e um sopro frio da hora de Deus roça-me pela face lívida.
O tempo! O passado! Aí algo, uma voz, um canto, um perfume ocasional levanta em minha alma o pano de boca das minhas recordações… Aquilo que fui e nunca mais serei!
[167]
Estou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é, porém, senão a monotonia de mim. Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade — a identidade sentida, embora falsa, consigo mesma — pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.
O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. Desejo partir — não para as Índias impossíveis, ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo, mas para o lugar qualquer — aldeia ou ermo — que tenha em si o não ser este lugar. Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar como vida, e não como repouso. Uma cabana à beira-mar, uma caverna, até, no socalco rugoso de uma serra, me pode dar isto. Infelizmente, só a minha vontade mo não pode dar.
A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem de cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor covarde que todos temos à liberdade — que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a — é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é a de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por conhecimento, que, pois que a monotonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo? Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam? Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os campos livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz que não estranharia a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lanços de escada até à rua, ou não entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os bons-dias com o barbeiro ocioso?
Tudo que nos cerca se torna parte de nós, se nos infiltra na sensação da carne e da vida, e, baba da grande Aranha, nos liga sutilmente ao que está perto, enleando-nos num leito leve de morte lenta, onde balouçamos ao vento.
Tudo é nós, e nós somos tudo; mas de que serve isto, se tudo é nada?
Um raio de sol, uma nuvem que a sombra súbita diz que passa, uma brisa que se ergue, o silêncio que se segue quando ela cessa, um rosto ou outro, algumas vozes, o riso casual entre elas que falam, e depois a noite onde emergem sem sentido os hieróglifos quebrados das estrelas.
[168]
E eu, que odeio a vida com timidez, temo a morte com fascinação. Tenho medo desse nada que pode ser outra coisa, e tenho medo dele simultaneamente como nada e outra coisa qualquer, como se nele se pudessem reunir o nulo e o horrível, como se no caixão me fechassem a respiração eterna de uma alma, corpórea, como se ali triturassem de clausura o imortal. A ideia de inferno, que só uma alma satânica poderia ter inventado, parece-me derivar-se de uma confusão desta maneira — ser a mistura de dois medos diferentes, que se contradizem e malignam.
[169]
Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho, tudo quanto tenho escrito. E acho que tudo é nulo e mais valera que eu o não houvesse feito. As coisas conseguidas, sejam impérios ou frases, têm, porque se conseguiram, aquela pior parte das coisas reais, que é o sabermos que são perecíveis. Não é isto, porém, que sinto e me dói no que fiz, nestes lentos momentos em que o releio. O que me dói é que não valeu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi no que fiz o não ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a pena fazê-lo.
Tudo quanto buscamos, buscamo-lo por uma ambição, mas essa ambição ou não se atinge, e somos pobres, ou julgamos que a atingimos, e somos loucos ricos.
O que me dói é que o melhor é mau, e que outro, se o houvesse, e que eu sonho, o haveria feito melhor. Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensamos em fazer. Desdiz não só da perfeição externa, senão da perfeição interna; falha não só à regra do que deveria ser, senão à regra do que julgávamos que poderia ser. Somos ocos não só por dentro, senão também por fora, párias da antecipação e da promessa.
Com que vigor da alma sozinha fiz página sobre página reclusa, vivendo sílaba a sílaba a magia falsa, não do que escrevia, mas do que supunha que escrevia! Com que encantamento de bruxedo irônico me julguei poeta da minha prosa, no momento alado em que ela me nascia, mais rápida que os movimentos da pena, como um desforço falaz aos insultos da vida! E afinal, hoje, relendo, vejo rebentar meus bonecos, sair-lhes a palha pelos rasgos, despejarem-se sem ter sido…
[170]
Depois que as últimas chuvas passaram para o sul, e só ficou o vento que as varreu, regressou aos montões da cidade a alegria do sol certo e apareceu muita roupa branca pendurada a saltar nas cordas esticadas por paus médios nas janelas altas dos prédios de todas as cores.
Também fiquei contente, porque existo. Saí de casa para um grande fim, que era, afinal, chegar a horas ao escritório. Mas, neste dia, a própria compulsão da vida participava daquela outra boa compulsão que faz o sol vir nas horas do almanaque, conforme a latitude e a longitude dos lugares da terra. Senti-me feliz por não poder sentir-me infeliz. Desci a rua descansadamente, cheio de certeza, porque, enfim, o escritório conhecido, a gente conhecida nele, eram certezas. Não admira que me sentisse livre, sem saber de quê. Nos cestos pousados à beira dos passeios da Rua da Prata as bananas de vender, sob o sol, eram de um amarelo grande.
Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o haver um sol bom neste Sul feliz, bananas mais amarelas por terem nódoas negras, a gente que as vende porque fala, os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo, azul esverdeado a ouro, todo este recanto doméstico do sistema do Universo.
Virá o dia em que não veja isto mais, em que me sobreviverão as bananas da orla do passeio, e as vozes das vendedeiras solertes, e os jornais do dia que o pequeno estendeu lado a lado na esquina do outro passeio da rua. Bem sei que as bananas serão outras, e que as vendedeiras serão outras, e que os jornais terão, a quem se baixar para vê-los, uma data que não é a de hoje. Mas eles, porque não vivem, duram ainda que outros; eu, porque vivo, passo ainda que o mesmo.
Esta hora poderia eu bem solenizá-la comprando bananas, pois me parece que nestas se projetou todo o sol do dia como um holofote sem máquina. Mas tenho vergonha dos rituais, dos símbolos, de comprar coisas na rua. Podiam não me embrulhar bem as bananas, não mas vender como devem ser vendidas por eu as não saber comprar como devem ser compradas. Podiam estranhar a minha voz ao perguntar o preço. Mais vale escrever do que ousar viver, ainda que viver não seja mais que comprar bananas ao sol, enquanto o sol dura e há bananas que vender.
Mais tarde, talvez… Sim, mais tarde… Um outro, talvez… Não sei…
[171]
Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.
A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro, e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Há quarenta anos que aquela figura de homem vive quase todo o dia numa cozinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vai de vez em quando à terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cozinha (definitivamente) para os campos que comprou na Galiza; está em Lisboa há quarenta anos e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um teatro, e há um só dia de Coliseu — palhaços nos vestígios interiores da sua vida. Casou não sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direção a onde eu estou, exprime uma grande, uma solene, uma contente felicidade. E ele não disfarça, nem [há] razão para que disfarce. Se a sente é porque verdadeiramente a tem.
E o criado velho que me serve, e que acaba de depor ante mim o que deve ser o milionésimo café da sua deposição de café em mesas? Tem a mesma vida que a do cozinheiro, apenas com a diferença de quatro ou cinco metros — os que distam da localização de um na cozinha para a localização do outro na parte de fora da casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vai mais vezes à Galiza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhece o Porto, onde esteve quatro anos, e é igualmente feliz.
Revejo, com um pasmo assustado, o panorama destas vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta delas, que quem não tem nem horror, nem pena, nem revolta, são os próprios que teriam direito a tê-las, são os mesmos que vivem essas vidas. É o erro central da imaginação literária: supor que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao gênio, apenas, o ser mais alguns outros.
Tudo, afinal, é dado em relação àquilo em que é dado. Um pequeno incidente de rua, que chama à porta o cozinheiro desta casa, entretém-no mais que me entretém a mim a contemplação da ideia mais original, a leitura do melhor livro, o mais grato dos sonhos inúteis. E, se a vida é essencialmente monotonia, o fato é que ele escapou à monotonia mais do que eu. E escapa à monotonia mais facilmente do que eu. A verdade não está com ele nem comigo, porque não está com ninguém; mas a felicidade está com ele deveras.
Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão. Para o meu cozinheiro monótono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstrato de novidade ficou no mar com a segunda delas.
Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espetáculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.
Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distração. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu. Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escritório da Rua dos Douradores, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de impossível?
A monotonia, a igualdade baça dos dias mesmos, a nenhuma diferença de hoje para ontem — isto me fique sempre, com a alma desperta para gozar da mosca que me distrai, passando casual ante meus olhos, da gargalhada que se ergue volúvel da rua incerta, a vasta libertação de serem horas de fechar o escritório, o repouso infinito de um dia feriado.
Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.
[172]
A ladeira leva ao moinho, mas o esforço não leva a nada.
Era uma tarde de primeiro outono, quando o céu tem um calor frio morto, e há nuvens que abafam a luz em cobertores de lentidão.
Duas coisas só me deu o Destino: uns livros de contabilidade e o dom de sonhar.
[173]
O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate — mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma.
Como um espetáculo na bruma.
Aprendi nos sonhos a coroar de imagens as frontes do quotidiano, a dizer o comum com estranheza, o simples com derivação, a dourar, com um sol de artifício, os recantos e os móveis mortos e [a] dar música, como para me embalar, quando as escrevo, às frases fluidas da minha fixação.
[174]
Depois de uma noite mal dormida, toda a gente não gosta de nós. O sono ido levou consigo qualquer coisa que nos tornava humanos. Há uma irritação latente conosco, parece, no mesmo ar inorgânico que nos cerca. Somos nós, afinal, que nos desapoiamos, e é entre nós e nós que se fere a diplomacia da batalha surda.
Tenho hoje arrastado pela rua os pés e o grande cansaço. Tenho a alma reduzida a uma meada atada, e o que sou e fui, que sou eu, esqueceu-se de seu nome. Se tenho amanhã, não sei senão que não dormi, e a confusão de vários intervalos põe grandes silêncios na minha fala interna.
Ah, grandes parques dos outros, jardins usuais para tantos, maravilhosas áleas dos que nunca me conhecerão! Estagno entre vigílias, como quem nunca ousou ser supérfluo, e o que medito estremunha-se com[o] um sonho ao fim.
Sou uma casa viúva, claustral de si mesma, sombreada de espectros tímidos e furtivos. Estou sempre no quarto ao lado, ou estão eles, e há grandes ruídos de árvores em meu torno. Divago e encontro; encontro porque divago. Meus dias de criança vestidos vós mesmos de bibe!
E, em meio de tudo isto, vou pela rua fora, dorminhoco da minha vagabundagem folha. Qualquer vento lento me varreu do solo, e erro, como um fim de crepúsculo, entre os acontecimentos da paisagem. Pesam-me as pálpebras nos pés arrastados. Quisera dormir porque ando. Tenho a boca fechada como se fosse para os beiços se pegarem. Naufrago o meu deambular.
Sim, não dormi, mas estou mais certo assim, quando nunca dormi nem durmo. Sou eu verdadeiramente nesta eternidade casual e simbólica do estado de meia-alma em que me iludo. Uma ou outra pessoa olha-me como se me conhecesse e me estranhasse. Sinto que os olhos também com órbitas sentidas sob pálpebras que as roçam, e não quero saber de haver mundo.
Tenho sono, muito sono, todo o sono!
[175]
Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da “ciência” primitiva dos evangelhos; ao mesmo tempo, a liberdade de discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com eles os problemas religiosos onde fossem da metafísica. Ébrias de uma coisa incerta, a que chamaram “positividade”, essas gerações criticaram toda a moral, esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doutrinas, só ficou a certeza de nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia, evidentemente, ser senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que acordamos para um mundo ávido de novidades sociais, e com alegria ia à conquista de uma liberdade que não sabia o que era, de um progresso que nunca definira.
Mas o criticismo frusto dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que a tivéssemos; se nos legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos legou a indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentemente, porque viviam numa época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem destruir sem sentir o edifício rachar-se. Nós herdamos a destruição e os seus resultados.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicômio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação.
[176]
A Estalagem da razão
A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível.
[177]
Teorias metafísicas que possam dar-nos um momento a ilusão de que explicamos o inexplicável; teorias morais que possam iludir-nos uma hora com o convencimento de que sabemos por fim qual, de todas as portas fechadas, é o ádito da virtude; teorias políticas que nos persuadam durante um dia que resolvemos qualquer problema, sendo que não há problema solúvel, exceto os da matemática — resumamos a nossa atitude para com a vida nesta ação conscientemente estéril, nesta preocupação que, se não dá prazer, evita, ao menos, sentirmos a presença da dor.
Nada há que tão notavelmente determine o auge de uma civilização, como o conhecimento, nos que a vivem, da esterilidade de todo o esforço, porque nos regem leis implacáveis, que nada revoga nem obstrui. Somos, porventura, servos algemados ao capricho de deuses, mais fortes porém não melhores que nós, subordinados, nós como eles, à regência férrea de um Destino abstrato, superior à justiça e à bondade, alheio ao bem e ao mal.
[178]
Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos.
Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro.
Tudo aquilo que em nossas atividades consideramos superior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é o ideal senão a confissão de que a vida não serve? Que é a arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo morto, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é antes uma imersão em nós mesmos, uma destruição das relações entre nós e a vida, uma sombra agitada da morte.
O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.
Povoamos sonhos, somos sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes, ideias, ideais e filosofias.
Nunca encontrar Deus, nunca saber, sequer, se Deus existe! Passar de mundo para mundo, de encarnação para encarnação, sempre na ilusão que acarinha, sempre no erro que afaga.
A verdade nunca, a paragem nunca! A união com Deus nunca! Nunca inteiramente em paz, mas sempre um pouco dela, sempre o desejo dela!
[179]
O instinto infante da humanidade que faz que o mais orgulhoso de nós, se é homem e não louco, anseie, [. . . ], pela mão paternal que o guie, como quer que seja logo que o guie, através do mistério e da confusão do mundo. Cada um de nós é um grão de pó que o vento da vida levanta, e depois deixa cair. Temos que arrimar-nos a um esteio, que pôr a mão pequena em uma outra mão; porque a hora é sempre incerta, o céu sempre longe, e a vida sempre alheia.
O mais alto de nós não é mais que um conhecedor mais próximo do oco e do incerto de tudo.
Pode ser que nos guie uma ilusão; a consciência, porém, é que nos não guia.
[180]
Se algum dia me suceder que, com uma vida firmemente segura, possa livremente escrever e publicar, sei que terei saudades desta vida incerta em que mal escrevo e não publico. Terei saudades, não só porque essa vida frusta é passado e vida que não mais terei, mas porque há em cada espécie de vida uma qualidade própria e um prazer peculiar, e quando se passa para outra vida, ainda que melhor, esse prazer peculiar é menos feliz, essa qualidade própria é menos boa, deixam de existir, e há uma falta.
Se algum dia me suceder que consiga levar ao bom calvário a cruz da minha intenção, encontrarei um calvário nesse bom calvário, e terei saudades de quando era fútil, frusto e imperfeito. Serei menos de qualquer maneira.
Tenho sono. O dia foi pesado de trabalho absurdo no escritório quase deserto. Dois empregados estão doentes e os outros não estão aqui. Estou só, salvo o moço longínquo. Tenho saudades da hipótese de poder ter um dia saudades, e ainda assim absurdas.
Quase peço aos deuses que haja que me guardem aqui, como num cofre, defendendo-me das agruras e também das felicidades da vida.
[181]
Nas vagas sombras de luz por findar antes que a tarde seja noite cedo, gozo de errar sem pensar entre o que a cidade se torna, e ando como se nada tivesse remédio. Agrada-me, mais à imaginação que aos sentidos, a tristeza dispersa que está comigo. Vago, e folheio em mim, sem o ler, um livro de texto intersperso [sic] de imagens rápidas, de que vou formando indolentemente uma ideia que nunca se completa.
Há quem leia com a rapidez com que olha, e conclua sem ter visto tudo.
Assim tiro do livro que se me folheia na alma uma história vaga por contar, memórias de um outro vagabundo, bocados de descrições de crepúsculos ou luares, com áleas de parques no meio, e figuras de seda várias, a passar, a passar.
Indiscrimino a tédio e outro. Sigo, simultaneamente, pela rua, pela tarde e pela leitura sonhada, e os caminhos são verdadeiramente percorridos. Emigro e repouso, como se estivesse a bordo com o navio já no mar alto.
Súbitos, os candeeiros mortos coincidem luzes pelos prolongamentos duplos da rua longa e curva. Como um baque a minha tristeza aumenta. E que o livro acabou. Há só, na viscosidade aérea da rua abstrata, um fio externo de sentimento, como a baba do Destino idiota, a pingar-me sobre a consciência da alma.
Outra vida, a da cidade que anoitece. Outra alma, a de quem olha a noite. Sigo incerto e alegórico, irrealmente sentiente. Sou como uma história que alguém houvesse contado, e, de tão bem contada, andasse carnal mas não muito neste mundo romance, no princípio de um capítulo: “A essa hora um homem podia ser visto seguir lentamente pela rua de…”
Que tenho eu com a vida?
[182]
Intervalo
Antefalhei a vida, porque nem sonhando-a ela me apareceu deleitosa.
Chegou até mim o cansaço dos sonhos… Tive ao senti-lo uma sensação externa e falsa, como a de ter chegado ao término de uma estrada infinita. Transbordei de mim não sei para onde, e aí fiquei estagnado e inútil.
Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me.
Sinto-me expulso da minha alma.
Assisto a mim. Presenceio-me. As minhas sensações passam diante de não sei que olhar meu como coisas externas. Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento.
Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única ação possível é vê-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de envelhecimentos!
A mínima ação é-me dolorosa como uma heroicidade. O mais pequeno gesto pesa-me no ideá-lo, como se fora uma coisa que eu realmente pensasse em fazer.
Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso em poder estar.
O ideal era não ter mais ação do que a ação falsa de um repuxo — subir para cair no mesmo sítio, brilho ao sol sem utilidade nenhuma a fazer som no silêncio da noite para que quem sonhe pense em rios no seu sonho e sorria esquecidamente.
[183]
Desde o princípio baço do dia quente e falso nuvens escuras e de contornos mal rotos rondavam a cidade oprimida. Dos lados a que chamamos da barra, sucessivas e torvas, essas nuvens sobrepunham-se, e uma antecipação de tragédia estendia-se com elas do indefinido rancor das ruas contra o sol alterado.
Era meio-dia e já, na saída para o almoço, pesava uma esperança má na atmosfera empalidecida. Farrapos de nuvens esfarrapadas negrejavam na dianteira dela. O céu, para os lados do Castelo, era limpo mas de um mau azul. Havia sol mas não apetecia gozá-lo.
À uma hora e meia da tarde, quando se regressara ao escritório, parecia mais limpo o céu, mas só para um lado antigo. Sobre os lados da barra estava de fato mais descoberto. De sobre a parte norte da cidade, porém, as nuvens conjugavam-se lentamente numa nuvem só — negra, implacável, avançando lentamente com garras rombas de branco cinzento na ponta de braços negros. Dentro em pouco atingiria o sol, e os ruídos da cidade parece que se abafavam com o esperá-la.
Era, ou parecia, um pouco mais límpido o céu para os lados de leste, mas o calor fazia mais desagrado. Suava-se na sombra da sala grande do escritório. “Vem aí uma grande trovoada”, disse o Moreira, e voltou a página do Razão.
Às três horas da tarde falhara já toda a ação do sol. Foi preciso — e era triste porque era verão — acender a luz elétrica — primeiro ao fundo da sala grande, onde estavam empacotando as remessas, depois já a meio da sala, onde se tornava difícil fazer sem erro as guias de remessa e notar nelas os números das senhas de caminho-de-ferro. Por fim, já eram quase quatro horas, até nós — os privilegiados das janelas — não víamos agradavelmente para trabalhar. O escritório ficou iluminado. O patrão Vasques atirou com o guarda-vento do gabinete e disse para fora, saindo: “Ó Moreira, eu tinha que ir a Benfica mas não vou; vai-se fartar de chover. ” “E é lá desse lado”, respondeu o Moreira, que morava ao pé da Avenida. Os ruídos da rua destacaram-se de repente, alteraram-se um pouco, e era, não sei porquê, um pouco triste o som das campainhas dos elétricos na rua paralela e próxima.
[184]
Antes que o estio cesse e chegue o outono, no cálido intervalo em que o ar pesa e as cores abrandam, as tardes costumam usar um traje sensível de gloríola falsa. São comparáveis àqueles artifícios da imaginação em que as saudades são de nada, e se prolongam indefinidas como rastos de navios formando a mesma cobra sucessiva.
Nessas tardes enche-me, como um mar em maré, um sentimento pior que o tédio mas a que não compete outro nome senão tédio — um sentimento de desolação sem lugar, de naufrágio de toda a alma. Sinto que perdi um Deus complacente, que a Substância de tudo morreu. E o universo sensível é para mim um cadáver que amei quando era vida; mas é tudo tornado nada na luz ainda quente das últimas nuvens coloridas.
O meu tédio assume aspectos de horror; o meu aborrecimento é um medo. O meu suor não é frio, mas é fria a minha consciência do meu suor. Não há mal-estar físico, salvo que o mal-estar da alma é tão grande que passa pelos poros do corpo e o inunda a ele também.
É tão magno o tédio, tão soberano o horror de estar vivo, que não concebo que coisa haja que pudesse servir de lenitivo, de antídoto, de bálsamo ou esquecimento para ele. Dormir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como tudo. Ir e parar são a mesma coisa impossível. Esperar e descrer equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira de frascos vazios.
Contudo que saudade do futuro, se deixo os olhos vulgares receber a saudação morta do dia iluminado que finda! Que grande enterro da esperança vai pela calada dourada ainda dos céus inertes, que cortejo de vácuos e nadas se espalha a azul rubro que vai ser pálido pelas vastas planícies do espaço alvar!
Não sei o que quero ou o que não quero. Deixei de saber querer, de saber como se quer, de saber as emoções ou os pensamentos com que ordinariamente se conhece que estamos querendo, ou querendo querer. Não sei quem sou ou o que sou. Como alguém soterrado sob um muro que se desmoronasse, jazo sob a vacuidade tombada do universo inteiro. E assim vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco do afago de ser diferente ondule, como uma brisa, pelo começo da minha impaciência de mim.
Ah, e a lua alta e maior destas noites plácidas, mornas de angústia e desassossego! A paz sinistra da beleza celeste, ironia fria do ar quente, azul negro enevoado de luar e tímido de estrelas.
[185]
Intervalo
Esta hora horrorosa que ou decresça para possível ou cresça para mortal.
Que a manhã nunca raie, e que eu e esta alcova toda, e a sua atmosfera interior a que pertenço, tudo se espiritualize em Noite, se absolute em Treva e nem fique de mim uma sombra que manche da minha memória o que quer que seja que não morra.
[186]
Prouvera aos deuses, meu coração triste, que o Destino tivesse um sentido! Prouvera antes ao Destino que os deuses o tivessem!
Sinto às vezes, acordando na noite, mãos invisíveis que tecem o meu fado.
Jazo a vida. Nada de mim interrompe nada.
[187]
A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta — duas misérias em um corpo só.
Sim, vejo nitidamente, com a clareza com [que] os relâmpagos da razão destacam do negrume da vida os objetos próximos que no-la formam, o que há de vil, de lasso, de deixado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a vida inteira — este escritório sórdido até à sua medula de gente, este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto, esta mercearia da esquina cujo dono conheço como gente conhece gente, estes moços da porta da taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas…
Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou repudiá-lo, e eu nem o domino, porque o não excedo adentro do real, nem o repudio, porque, sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.
E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a covardia de ter como vida aquele lixo da alma que os outros têm só no sono, na figura da morte com que ressonam, na calma com que parecem vegetais progredidos!
Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas adentro, nem um desejo inútil que não seja deveras inútil!
Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras:
“Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma! ” Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?
É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.
E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida, absurda como um relógio público parado.
Aquela sensibilidade tênue, mas firme, o sonho longo mas consciente que forma no seu conjunto o meu privilégio de penumbra.
[188]
O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de a não pensar. Viver a vida decorrentemente, exteriormente, como um gato ou um cão — assim fazem os homens gerais, e assim se deve viver a vida para que possa contar a satisfação do gato e do cão.
Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o mesmo pensamento, porque pensar é decompor. Se os homens soubessem meditar no mistério da vida, se soubessem sentir as mil complexidades que espiam a alma em cada pormenor da ação, não agiriam nunca, não viveriam até. Matar-se-iam de assustados, como os que se suicidam para não ser guilhotinados no dia seguinte.
[189]
Dia de chuva
O ar é de um amarelo escondido, como um amarelo pálido visto através dum branco sujo. Mal há amarelo no ar acinzentado. A palidez do cinzento, porém, tem um amarelo na sua tristeza.
[190]
Qualquer deslocamento das horas usuais traz sempre ao espírito uma novidade fria, um prazer levemente desconfortante. Quem tem o hábito de sair do escritório às seis horas, e por acaso saia às cinco, tem desde logo um feriado mental e uma coisa que parece pena de não saber o que fazer de si.
Ontem, por ter de que tratar longe, saí do escritório às quatro horas, e às cinco tinha terminado a minha tarefa afastada. Não costumo estar nas ruas àquela hora, e por isso estava numa cidade diferente. O tom lento da luz nas frontarias usuais era de uma doçura improfícua, e os transeuntes de sempre passavam por mim na cidade ao lado, marinheiros desembarcados da esquadra de ontem à noite.
Eram ainda horas de estar aberto o escritório. Recolhi a ele com um pasmo natural dos empregados de quem me havia já despedido. Então de volta? Sim, de volta. Estava ali livre de sentir, sozinho com os que me acompanhavam sem que espiritualmente ali estivessem para mim… Era em certo modo o lar, isto é, o lugar onde se não sente.
[191]
Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me “compreenda”, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo.
Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma alegria do ar é fresca demais contra a pele. O dia vai acabando não em cinzento, mas em azul-pálido. Um azul vago reflete-se, mesmo, nas pedras das ruas. Dói viver, mas é de longe. Sentir não importa. Acende-se uma ou outra montra.
Em uma outra janela alta há gente que vê acabarem o trabalho. O mendigo que roça por mim pasmaria, se me conhecesse.
No azul menos pálido e menos azul, que se espelha nos prédios, entardece um pouco mais a hora indefinida.
Cai leve, fim do dia certo, em que os que creem e erram se engrenam no trabalho do costume, e têm, na sua própria dor, a felicidade da inconsciência. Cai leve, onda de luz que cessa, melancolia da tarde inútil, bruma sem névoa que entra no meu coração. Cai leve, suave, indefinida palidez Lúcida e azul da tarde aquática — leve, suave, triste sobre a terra simples e fria. Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor.
[192]
Três dias seguidos de calor sem calma, tempestade latente no mal-estar da quietude de tudo, vieram trazer, porque a tempestade se escoasse para outro ponto, um leve fresco morno e grato à superfície lúcida das coisas. Assim às vezes, neste decurso da vida, a alma, que sofreu porque a vida lhe pesou, sente subitamente um alívio, sem que se desse nela o que o explicasse.
Concebo que sejamos climas, sobre que pairam ameaças de tormenta, noutro ponto realizadas.
A imensidade vazia das coisas, o grande esquecimento que há no céu e na terra…
[193]
Tenho assistido, incógnito, ao desfalecimento gradual da minha vida, ao soçobro lento de tudo quanto quis ser. Posso dizer, com aquela verdade que não precisa de flores para se saber que está morta, que não há coisa que eu tenha querido, ou em que tenha posto, um momento que fosse, o sonho só desse momento, que se me não tenha desfeito debaixo das janelas como pó parecendo pedra caído de um vaso de andar alto. Parece, até, que o Destino tem sempre procurado, primeiro, fazer-me amar ou querer aquilo que ele mesmo tinha disposto para que no dia seguinte eu visse que não tinha ou teria.
Espectador irônico de mim mesmo, nunca, porém, desanimei de assistir à vida. E, desde que sei, hoje, por antecipação de cada vaga esperança que ela há-de ser desiludida, sofro o gozo especial de gozar já a desilusão com a esperança, como um amargo com doce que torna o doce doce contra o amargo. Sou um estratégico sombrio, que, tendo perdido todas as batalhas, traça já, no papel dos seus planos, gozando-lhe o esquema, os pormenores da sua retirada fatal, na véspera de cada sua nova batalha.
Tem-me perseguido, como um ente maligno, o destino de não poder desejar sem saber que terei que não ter. Se um momento vejo na rua um vulto núbil de rapariga, e, indiferentemente que seja, tenho um momento de supor o que seria se ele fosse meu, é sempre certo que, a dez passos do meu sonho, aquela rapariga encontra o homem que vejo que é o marido ou o amante. Um romântico faria disto uma tragédia; um estranho sentiria isto como uma comédia: eu, porém, misturo as duas coisas, pois sou romântico em mim e estranho a mim, e viro a página para outra ironia.
Uns dizem que sem esperança a vida é impossível, outros que com esperança é vazia. Para mim, que hoje não espero nem desespero, ela é um simples quadro externo, que me inclui a mim, e a que assisto como um espetáculo sem enredo, feito só para divertir os olhos — bailado sem nexo, mexer de folhas ao vento, nuvens em que a luz do sol muda de cores, arruamentos antigos, ao acaso, em pontos desconformes da cidade.
Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal, ou, no modo como faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os loucos, de flores secas que continuam vivas nos meus sonhos. E, acima de tudo, estou tranquilo, como um boneco de serradura que, tomando consciência de si mesmo, abanasse de vez em quando a cabeça para que o guizo no alto do boné em bico (parte integrante da mesma cabeça) fizesse soar qualquer coisa, vida tinida do morto, aviso mínimo ao Destino.
Quantas vezes, contudo, em pleno meio desta insatisfação sossegada, me não sobe pouco a pouco à emoção consciente o sentimento do vácuo e do tédio de pensar assim! Quantas vezes não me sinto, como quem ouve falar através de sons que cessam e recomeçam, a amargura essencial desta vida estranha à vida humana — vida em que nada se passa salvo na consciência dela! Quantas vezes, despertando de mim, não entrevejo, do exílio que sou, quanto fora melhor ser o ninguém de todos, o feliz que tem ao menos a amargura real, o contente que tem cansaço em vez de tédio, que sofre em vez de supor que sofre, que se mata, sim, em vez de se morrer!
Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo.
Sou uma espécie de carta de jogar, de naipe antigo e incógnito, restando única do baralho perdido. Não tenho sentido, não sei do meu valor, não tenho a que me compare para que me encontre, não tenho a que sirva para que me conheça. E assim, em imagens sucessivas em que me descrevo — não sem verdade, mas com mentiras —, vou ficando mais nas imagens do que em mim, dizendo-me até não ser, escrevendo com a alma como tinta, útil para mais nada do que para se escrever com ela. Mas cessa a reação, e de novo me resigno. Volto em mim ao que sou, ainda que seja nada. E alguma coisa de lágrimas sem choro arde nos meus olhos hirtos, alguma coisa de angústia que não houve me empola asperamente a garganta seca. Mas aí, nem sei o que chorara, se houvesse chorado, nem por que foi que o não chorei. A ficção acompanha-me, como a minha sombra. E o que quero é dormir.
[194]
Há um grande cansaço na alma do meu coração. Entristece-me quem eu nunca fui, e não sei que espécie de saudades é a lembrança que tenho dele. Caí contra as esperanças e as certezas, com os poentes todos.
[195]
Há criaturas que sofrem realmente por não poder ter vivido na vida real com o Sr. Pickwick e ter apertado a mão ao Sr. Wardle. Sou um desses. Tenho chorado lágrimas verdadeiras sobre esse romance, por não ter vivido naquele tempo, com aquela gente, gente real.
Os desastres dos romances são sempre belos porque não corre sangue autêntico neles, nem apodrecem os mortos nos romances, nem a podridão é podre nos romances.
Quando o Sr. Pickwick é ridículo, não é ridículo, porque o é num romance. Quem sabe se o romance não será uma mais perfeita realidade e vida que Deus cria através de nós, que nós — quem sabe — existimos apenas para criar? As civilizações parece não existirem senão para produzir arte e literatura; é, palavras, o que delas fala e fica. Por que não serão essas figuras extra-humanas verdadeiramente reais? Dói-me mal na existência mental pensar que isto possa ser assim…
[196]
Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos — a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo.
Todos estes meios tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas.
Não sei se estes sentimentos são uma loucura lenta do desconsolo, se são reminiscências de qualquer outro mundo em que houvéssemos estado — reminiscências cruzadas e misturadas, como coisas vistas em sonhos, absurdas na figura que vemos mas não na origem se a soubéssemos. Não sei se houve outros seres que fomos, cuja maior completidão sentimos hoje, na sombra que deles somos, de uma maneira incompleta — perdida a solidez e nós figurando-no-la mal nas só duas dimensões da sombra que vivemos.
Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na alma. A impossibilidade de nos figurar uma coisa a que correspondam, a impossibilidade de encontrar qualquer coisa que substitua aquela a que se abraçam em visão — tudo isto pesa como uma condenação dada não se sabe onde, ou por quem, ou porquê.
Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um desgosto da vida e de todos os seus gestos, um cansaço antecipado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anônimo de todos os sentimentos. Nestas horas de mágoa sutil, torna-se-nos impossível, até em sonho, ser amante, ser herói, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na ideia do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. É tudo um caos de coisas nenhumas.
Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias — está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma — como única realidade deste momento — há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro.
[197]
Sinto o tempo com uma dor enorme. É sempre com uma comoção exagerada que abandono qualquer coisa. O pobre quarto alugado onde passei uns meses, a mesa do hotel de província onde passei seis dias, a própria triste sala de espera da estação de caminho de ferro onde gastei duas horas à espera do comboio — sim, mas as coisas boas da vida, quando as abandono e penso, com toda a sensibilidade dos meus nervos, que nunca mais as verei e as terei, pelo menos naquele preciso e exato momento, doem-me metafisicamente. Abre-se-me um abismo na alma e um sopro frio da hora de Deus roça-me pela face lívida.
O tempo! O passado! Aí algo, uma voz, um canto, um perfume ocasional levanta em minha alma o pano de boca das minhas recordações… Aquilo que fui e nunca mais serei!
